Política

60 anos do Golpe Militar de 1964: uma reflexão necessária sobre democracia e direitos

Política

Publicação 02/04/2024

 

60 anos do Golpe Militar de 1964: uma reflexão necessária sobre democracia e direitos


O início de um dos períodos mais sombrios da história recente brasileira completa 60 anos neste 01 de abril. O Golpe Militar de 1964 representou uma interrupção na democracia, desde que o Brasil adotou o presidencialismo, quando proclamou-se a República em 1889. O regime militar durou 21 anos, sendo marcado pela tortura e morte aos opositores, censura à imprensa e aos artistas contestadores e restrição de direitos políticos. “A ditadura militar, desde 64 até 85, viveu mais de 20 anos de uma suspensão dos diversos direitos que compõem aquilo que chamamos de estado democrático de direito”, afirma André Fabiano Voigt, professor de história da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Quase 40 anos depois do fim do regime militar, ainda é possível notar as heranças deixadas por esse período da história do Brasil, como a polarização social, sobretudo a do atual cenário político. “Parece que as pessoas não estão mais se entendendo. Lamento isso, pois acredito que essas questões já poderiam ter sido ultrapassadas. Entretanto, estão retornando alguns ódios coletivos, que, confesso, me fazem ter bastante desânimo em relação ao próprio exercício da educação. Ainda hoje, se existem grupos que acreditam na ideia de que o abuso da violência explícita, com uso de armas e invasões, como um recurso válido contra uma suposta desordem, é porque talvez não entendamos mais, como país, o que significa uma garantia democrática, que envolve, entre outras coisas, o não uso da violência sob qualquer pretexto, e caso ele haja, que seja julgado pelas instituições”, opina Voigt. 
Os fatores que levaram o Brasil à vivência da ditadura, os interesses externos e internos do país para a instauração do regime e as consequências disso, no corpo social brasileiro, são tópicos importantes para se compreender a importância de se lembrar, analisar e debater esse período, visto que isso possibilita a conscientização do povo brasileiro de que seus direitos básicos, como o exercício da política e da expressão, são inegociáveis.  


Herança
Quase 40 anos depois do fim do regime militar, ainda é possível notar as heranças deixadas por esse período da história do Brasil, como a polarização social, sobretudo a do atual cenário político. “Parece que as pessoas não estão mais se entendendo. Lamento isso, pois acredito que essas questões já poderiam ter sido ultrapassadas. Entretanto, estão retornando alguns ódios coletivos, que, confesso, me fazem ter bastante desânimo em relação ao próprio exercício da educação. Ainda hoje, se existem grupos que acreditam na ideia de que o abuso da violência explícita, com uso de armas e invasões, como um recurso válido contra uma suposta desordem, é porque talvez não entendamos mais, como país, o que significa uma garantia democrática, que envolve, entre outras coisas, o não uso da violência sob qualquer pretexto, e caso ele haja, que seja julgado pelas instituições”, opina Voigt. 
Os fatores que levaram o Brasil à vivência da ditadura, os interesses externos e internos do país para a instauração do regime e as consequências disso, no corpo social brasileiro, são tópicos importantes para se compreender a importância de se lembrar, analisar e debater esse período, visto que isso possibilita a conscientização do povo brasileiro de que seus direitos básicos, como o exercício da política e da expressão, são inegociáveis.  
Os antecedentes da ditadura militar
Manifestantes pró-ditadura nas ruas na marcha pela família
A legitimação ao golpe pelo lado conservador da população. (Foto: Agência O Globo)
Um dos antecedentes para esse período foi a eleição e renúncia de Jânio Quadros, ambas no ano de 1961. O vice João Goulart (Jango) assumiu a presidência, ambos pertencentes a partidos políticos opostos e que propunham projetos diferentes para o país. Jango estava em viagem diplomática na China, sob acusações de ligação com países comunistas. Dessa forma, a aceitação da posse dele seria recusada e também havia um plano para prender Jango quando voltasse ao Brasil. Diante desse cenário, Leonel Brizola deu início à Campanha da Legalidade, que buscava garantir a posse de João Goulart. Para solucionar o impasse, a posse de Jango foi aceita em um regime parlamentarista, no qual o presidente tem poderes reduzidos. 
“Em 63, após uma série de convulsões ou de oposições é estabelecido o presidencialismo novamente e Jango se torna efetivamente presidente da república, sem o bloqueio por parte do parlamentarismo”, explica Voigt. Com plenos poderes, João Goulart dá início a suas propostas de reformas de base, uma proposta do governo que buscava solucionar questões estruturais da sociedade brasileira, sendo marcadas por seu discurso do dia 13 de março de 1964, feito para 200 mil pessoas em frente à estação Central do Brasil. Dentre elas, reforma tributária, bancária, administrativa, agrária, entre outras, sendo a proposta de reforma agrária a que gerou mais discussões no campo político, além de retirar o apoio que o governo tinha do Partido Social Democrático (PSD). “Só as reformas de base, sobretudo no que diz respeito à reforma de propriedade de terra, já foram vistas como uma ameaça”, diz o professor Voigt. 
Os conservadores, em busca de manifestarem seu descontentamento com as Reformas de Base, foram às ruas, no dia 19 de março de 1964, marcando a realização da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, uma passeata contra o comunismo que pedia pela intervenção dos militares. A marcha ocorreu em São Paulo e contou com cerca de 500 mil pessoas. O historiador Voigt propõe um marco histórico quanto a posse de terras no Brasil e afirma: “Quando vai se estabelecer uma reforma de base no sentido de reforma agrária, isso seria um abalo a mais de 100 anos, pelo menos, em que a terra era um usufruto apenas de uma pequena parcela da população brasileira, nomeadamente as pessoas que se enquadraram nos critérios para ser eleitor: quase sempre homens, quase sempre brancos, quase sempre com uma renda anual muito grande”.
O golpe teve apoio dos Estados Unidos, que, no contexto da Guerra Fria, buscava conter o avanço do comunismo e manter os países alinhados ao capitalismo. Em 2014, o jornal El País publicou uma matéria que fala sobre gravações entre o ex-presidente norte americano, John F. Kennedy, e o embaixador norte americano no Brasil, Lincoln Gordon. Na gravação, cogita-se intervir militarmente e retirar João Goulart do governo brasileiro. No áudio, John F. Kennedy questiona “Você vê a situação indo para onde deveria? Acha aconselhável que façamos uma intervenção militar?”.John Dinges, que atuou como jornalista correspondente na América Latina na década de 70, declarou em entrevista para a agência de notícias, Agência Brasil, que havia um temor por parte dos Estados Unidos de uma nova revolução cubana, motivação que levou o governo americano a conspirar e incentivar os militares brasileiros a retirar João Goulart do poder. 
A Operação Brother Sam foi um movimento de apoio aos golpistas promovido pelas Forças Armadas Americanas; segundo André Voigt, “Havia uma possibilidade muito concreta de que, caso houvesse algum tipo de resistência no momento do golpe, por parte do governo, haveria um apoio logístico ou militar ligado ao litoral brasileiro”. No entanto, a operação não foi posta em prática, pois não houve resistência. Em uma notícia sobre a morte de Gordon (2009), a Folha de São Paulo declara que João Goulart foi deposto antes que o apoio norte americano chegasse no litoral. Além disso, Gordon continuaria negando seu envolvimento com o golpe mesmo com evidências históricas apontando o contrário.   
Na madrugada entre os dias 31 de março e 1º de abril de 1964, os militares se mobilizaram ao Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, e destituíram o então presidente João Goulart. Este foi ao Rio Grande do Sul conversar com Brizola, que se reuniu com alguns generais para estabelecer uma possível resistência. “Brizola pergunta [a Jango]: ‘Cabe a você saber se nós vamos fazer uma resistência a esse golpe ou não’. Jango disse neste momento: ‘Não. Eu quero evitar derramamento de sangue. Prefiro me retirar, prefiro me exilar do que causar mais derramamento de sangue’”, conta Voigt. Assim, Jango se exilou no Uruguai e a junta militar assumiu o governo. O general Castello Branco tomou posse no dia 15 de abril de 1964, tornando-se o primeiro governante desse período. “A partir daí, vem uma sucessão de coisas: os atos institucionais, que vão retirando cada vez mais as liberdades básicas da nação brasileira, cada vez retirando mais elementos do estado democrático de direito, culminando com o AI-5, que aí realmente é esse dispositivo que fecha completamente a possibilidade de se ter uma resistência que não fosse considerada criminosa”, pontua o professor de História.
A mudança da democracia para a ditadura foi sentida pela população em efeito cascata, começando por aqueles que poderiam exercer alguma resistência, como Juscelino Kubitschek (JK), que chegou a se reunir com Jango, seu antigo rival político, para formularem uma frente ampla para uma possível eleição em 1966 - JK então se exilou por conta da perseguição dos militares. Voigt afirma que se tinha a ideia de que ocorreria a eleição em 1966, de que o governo militar seria provisório. No entanto, acabou não havendo processo eleitoral, e sim a indicação do general Costa e Silva. Após impactar o macro, isto é, os políticos que iam contra a imposição da ditadura, o micro, ou seja, as pessoas no geral, começaram a sentir o peso de estar sendo vigiadas pelos militares. “Bastava ter um vizinho que ia contra você, ele ia te denunciar e de alguma maneira você seria perseguido. Nas universidades públicas sempre tinham, de acordo com relatos de vários professores na época, infiltrados em cada sala para saber o que era falado durante a aula. Dependendo do que fosse falado ou não, a pessoa poderia ser culpabilizada, perseguida ou talvez até morta”, explica o professor.
Em respeito à censura à arte, Voigt aponta a incompetência dos censores da ditadura como um motivo para o desenvolvimento da criatividade dos artistas, que tinham de criar maneiras de criticar o regime sem que os militares descobrissem. O historiador afirma: “Os censores tinham uma atitude desencontrada. O Chico Buarque fez músicas que tinham críticas bastante duras ao regime, mas sem falar exatamente nomes de pessoas ou coisas do tipo. Ele dava uma indireta, usava o poder da própria arte de falar diversas coisas de diversas maneiras para a partir daí criar uma forma de crítica ou ironia ao sistema. Na música ‘Fado Tropical’, a única palavra censurada de início foi a palavra sífilis, fazendo alusão à ideia de que a civilização se confunde com ‘sifilização’, frase de Gilberto Freyre, que diria que a miscigenação no Brasil foi um processo extremamente violento e que levou uma série de pessoas a desenvolverem, entre outras coisas, a contaminação de sífilis. Os censores estavam preocupados em dizer o seguinte: ‘Não podemos dizer sífilis, porque fala de uma doença sexualmente transmissível, isso vai contra a moralidade da família. Então, vamos censurar a palavra sífilis’. Quer dizer, a censura de um modo geral foi um cerceamento de liberdades básicas, mas a falta de eficiência dos censores é o que tornou possível criar esse quadro tão produtivo de criatividade artística que existiu durante a ditadura militar”.   
ditadura no Brasil passou por algumas fases: Governo Castello Branco (64-67), marcado pela instituição do AI-1 (Ato Institucional n°1), que permitia eleições indiretas para presidente, assim como a perseguição de adversários políticos; Costa e Silva (67-69), que marca o início dos “anos de chumbo”, pela forte violência e pela instauração do AI-5, responsável por fechar o Congresso Nacional por tempo indeterminado, suspender os direitos políticos dos cidadãos, entre outras determinações; Médice (69-74), que continuou com os “anos de chumbo”, marcado pela grande repressão, tortura, censura aos opositores e, também, pela propaganda que visava fazer o povo brasileiro acreditar no progresso do país, como a divulgação do sucesso da seleção masculina brasileira de futebol campeã da Copa de 1970 e o slogan “Brasil, ame ou deixe-o”; Geisel (74-79), notável pela abertura política lenta e gradual e pelo aprofundamento do Brasil na crise econômica; e Figueiredo (79-85), marcado pelo aumento da velocidade de abertura do governo, publicação da Lei da Anistia e aumento dos protestos pela “Diretas Já”. 
Voigt declara que “João Figueiredo vai ser um dos primeiros a concordar com a ideia de ‘vamos fazer essa transição logo de uma vez.’ Embora, ele talvez não fosse um governante militar menos duro em suas ações”. Portanto, a abertura política foi um processo lento que gradualmente devolvia os direitos individuais e a liberdade de imprensa, também marcada por avanços e retrocessos, pois os militares tinham o controle da transição. A abertura passou principalmente por medidas como: A Lei da Anistia, a volta do pluripartidarismo e a revogação do AI-5, mesmo com os avanços rumo à democracia, os militares também se beneficiaram dessas medidas.
O movimento “Diretas Já”, que surgiu em 1983, reivindicava eleições diretas para presidente. A mobilização foi realizada por meio de comícios que ganhavam público com o tempo. O movimento defendia a aprovação da Emenda Dante Oliveira, que propunha eleições diretas para presidente em 1985. Apesar da emenda não ser aprovada, em 85 ocorreram eleições indiretas, que foram vencidas por Tancredo Neves. No entanto, o presidente eleito ficou doente, vindo a falecer posteriormente. Dessa forma, a presidência é assumida pelo vice-presidente José Sarney, que garante a transição para a democracia.

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